sábado, 18 de outubro de 2025

O Eterno Retorno do Mito: Por que as Narrativas Antigas ainda nos Governam

 

### **O Eterno Retorno do Mito: Por que as Narrativas Antigas ainda nos Governam**


Desde os primórdios da humanidade, sentados ao redor de fogueiras sob um céu estrelado, até os modernos cinemas IMAX e os feeds infinitos das redes sociais, uma constante permanece: a necessidade humana de contar e ouvir histórias. Não quaisquer histórias, mas aquelas que tocam o cerne da nossa existência – os mitos. Apesar de frequentemente associarmos o termo "mito" a lendas falsas ou superstições antigas, sua essência é muito mais profunda e sua presença, longe de ser um artefato do passado, experimenta um eterno retorno, remodelando-se para falar à condição humana em cada nova era.


#### **O que é um Mito, Afinal?**


Antes de compreendermos seu retorno, é crucial definir o mito em seu sentido mais potente. Um mito não é uma mentira. Segundo estudiosos como Joseph Campbell e Carl Jung, um mito é uma narrativa fundamental que explica as origens do mundo (cosmogonia), os fenômenos naturais, o sentido da vida e da morte, e os fundamentos da cultura e da moralidade. Ele é a linguagem simbólica do inconsciente coletivo, um repositório de arquétiposo Herói, a Mãe Terra, o Sábio, a Sombra – que são universais e atemporais.


Os mitos gregos, nórdicos, egípcios ou indígenas não eram entretenimento. Eles eram a psicanálise, a teologia, a ciência e a filosofia de seus povos. Respondiam às perguntas mais angustiantes: De onde viemos? Para onde vamos? Qual o propósito do sofrimento?


#### **O Mecanismo do Eterno Retorno**


A expressão "Eterno Retorno" foi cunhada pelo filósofo Friedrich Nietzsche para descrever a hipótese de que o universo e todos os eventos nele se repetem infinitamente. Ao aplicarmos essa ideia ao mito, não falamos de uma repetição literal, mas de uma **ressignificação perpétua**.


O estudioso de religiões Mircea Eliade argumentava que as sociedades arcaicas viviam em um "tempo sagrado", acessível através de rituais que reatualizavam os mitos fundadores. Na modernidade, secularizamos nosso mundo, mas não conseguimos secularizar nossa psique. A necessidade de significado, de transcendência e de modelos heroicos permanece. Como não temos mais Zeus ou Odin como figuras literais, projetamos esses arquétipos em novas formas:


1.  **Os Super-Heróis como Deuses do Olimpo:** Homem-Aranha, Mulher-Maravilha, Homem de Ferro e Thor não são apenas personagens de quadrinhos. Eles são a encarnação moderna do mito do herói de Joseph Campbell – o "monomito". Sua jornada (partida, iniciação, retorno) espelha a de Hércules ou Odisseu. Eles lidam com poderes divinos, dilemas morais e a luta eterna entre o bem e o mal, servindo como alegorias para nossas próprias lutas internas e sociais.


2.  **As Sagas Espaciais como Epopeias:** *Star Wars* é, talvez, o exemplo mais claro. George Lucas foi diretamente influenciado por Campbell. Luke Skywalker é o herói de mil faces, guiado por um sábio (Obi-Wan Kenobi), que enfrenta sua própria sombra (Darth Vader) e luta para restaurar o equilíbrio na "Força" – um conceito profundamente mitológico e espiritual. A jornada espacial é a nova jornada pelo mar desconhecido.


3.  **As Narrativas de Origem e Fim:** A ciência nos deu o Big Bang e a Teoria da Evolução como nossa nova cosmogonia. Narrativas distópicas sobre pandemias, zumbis ou inteligência artificial descontrolada funcionam como nossos mitos escatológicos, refletindo o medo do fim do mundo e a luta pela sobrevivência, assim como o Ragnarök nórdico ou o Apocalipse bíblico.


4.  **As "Cavernas de Platão" Digitais:** As redes sociais criaram novos palcos para dramas arquetípicos. A persona que criamos online é uma máscara (a "persona" junguiana). Os "influenciadores" podem ser vistos como xamãs ou oráculos, prometendo segredos para uma vida plena. A cultura do cancelamento e a busca por vilões públicos é uma versão moderna da expulsão do bode expiatório, um ritual purificador encontrado em inúmeras culturas.


#### **Por que o Mito Retorna?**


O retorno do mito não é um sinal de atraso, mas uma prova da sua utilidade psíquica e social.


*   **Estrutura em um Mundo Caótico:** Em uma era de mudanças aceleradas e incertezas, as estruturas narrativas dos mitos oferecem um conforto arcaico. Elas fornecem um mapa, mesmo que simbólico, para navegar a complexidade da vida.

*   **Significado e Identidade:** Os mitos respondem à nossa sede por significado. Eles nos ajudam a entender nosso lugar no cosmos e a conectar nossa história individual a uma narrativa maior, conferindo um senso de pertencimento e propósito.

*   **Catarse e Reflexão:** Ao nos identificarmos com a jornada do herói, vivemos suas provações e triunfos vicariamente. Isso permite uma catarse emocional e uma reflexão sobre nossos próprios valores, medos e potenciais.


#### **Conclusão: A Jornada que Nunça Termina**


O eterno retorno do mito não é uma repetição estéril, mas um diálogo contínuo entre o passado e o presente, entre o inconsciente coletivo e a consciência individual. Ele prova que, por mais que a tecnologia avance e a sociedade se transforme, o coração humano continua a bater no mesmo ritmo ancestral, ansiando por histórias que expliquem o mistério de estar vivo.


Reconhecer os mitos em nossas vidas modernas não é um exercício de desmistificação, mas de enriquecimento. É perceber que, ao assistirmos a um filme, lermos um livro ou mesmo ao construirmos nossa identidade online, estamos, na verdade, reencenando os rituais mais antigos da humanidade. O mito não voltou; ele simplesmente nunca foi embora. E compreender essa linguagem secreta é, talvez, a chave para compreendermos a nós mesmos.

Bibliografia

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. [Título original: The Hero with a Thousand Faces]. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Pensamento, 1989.

ELIADE, Mircea. O Mito do Eterno Retorno: Arquéticos e Repetição. [Título original: Le Mythe de l'éternel retour: archétypes et répétition]. Tradução de José Antonio C. Abranches. Lisboa: Edições 70, 2000.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: A Essência das Religiões. [Título original: Le Sacré et le Profane]. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. [Título original: Die Archetypen und das kollektive Unbewusste]. Tradução de Maria Luiza Appy, Dora Mariana R. Ferreira da Silva. Petrópolis: Vozes, 2000.

JUNG, Carl Gustav. O Homem e Seus Símbolos. [Título original: Man and His Symbols]. Tradução de Maria Lúcia Pinho. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2019.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra: Um Livro para Todos e para Ninguém. [Título original: Also sprach Zarathustra: Ein Buch für Alle und Keinen]. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012. (Especialmente o Livro VII, que contém o "Mito da Caverna").-

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